Não tenho senão uma língua, mas ela não é minha.
Jaques Derrida
Em novembro de 2020 assumi a vaga de professora substituta de Língua Portuguesa no Colégio de Aplicação da UFRJ. Estávamos em plena pandemia de Covid-19 e, por conta da quarentena, eu precisaria assumir a vaga e trabalhar de forma remota com os estudantes do 9º ano do E.F. Eu e meus estudantes nunca tínhamos nos visto pessoalmente, nossos encontros seriam semanais e, exclusivamente, através das plataformas virtuais; nossas conversas restritas às demandas da disciplina, nossas dores e aflições silenciadas pela impossibilidade de um ou abraço ou um simples aperto de mãos.
Ao assumir tal vaga eu estaria responsável por duas turmas que estavam até então sem professor de Língua Portuguesa. Tivemos um primeiro e breve encontro dentro de uma aula coletiva e ali fomos apresentados. Contudo, antes de iniciar o meu trabalho, eu precisava saber minimamente sobre quem eram os meus estudantes, sobre o que estavam passando e pensando diante da impossibilidade de socialização, restrições sanitárias, etc. Então, ao planejar meus conteúdos e ações, eu imediatamente preparei uma espécie de formulário para saber um pouco a respeito de suas necessidades, queixas, ansiedades ou expectativas em relação à disciplina, aos conteúdos e ao mundo.
As respostas foram variadas e espantosamente muito pessoais para uma turma de adolescentes que nunca tinham visto sua mais nova professora. Acolhi todas as respostas e tentaria dar conta de todas as demandas assim que fosse possível. Ali estavam queixas de cunho familiar e escolar, mas também indicações de caminhos e sugestões que muito me auxiliaram.
Entretanto, do meio das respostas uma me fez parar e refletir. Um estudante dizia: “Professora, ensina a gente a escrever difícil!” Para falar a verdade, fiquei com essa questão em mim até o presente momento, em que opto relatá-la aqui. O que me fez parar e refletir não foi o que ele escreveu, mas sim o que continha no avesso dessa sugestão. No que consiste “escrever difícil”? O que vem a ser escrever difícil para eles? Quem escreve difícil? Para quem nossa escrita pode ser considerada difícil? E mais: por que desejamos escrever “difícil” se o próprio adjetivo já nos distancia dos demais?
Seguia pensando no intuito desse estudante e no seu desejo. Que mérito ele acredita que teria sabendo escrever “difícil”? Teria ele aguardado a chegada de uma profissional das Letras para solicitar seu desejo ou expressou esse desejo de momento? Tantas perguntas em uma só frase, em um único pedido, apelo, solicitação. Ao ler o pedido desse estudante também me perguntava acerca das minhas próprias possibilidades, seria eu capaz de explicar a ele sobre as inúmeras questões que envolviam a sua solicitação?
Fui para a aula e puxei assunto com as turmas. Queria ouvi-los a respeito dessa questão e descobri que era um desejo compartilhado pela grande maioria dos estudantes daquele ano de escolaridade. Eles todos queriam aprender a escrever “difícil”! Perceber isso só fez minha angústia aumentar, mas com uma dose de bom humor e jogo de cintura me pus a conversar com eles a respeito do que me pediam. Expliquei que falar e escrever de forma considerada “difícil” era uma questão que deveríamos debater, pois ali estavam muitas questões e intenções importantes que precisaríamos rever.
Primeiramente, a questão do “difícil”. Pedi que pensassem comigo se o termo “difícil” aproximava ou distanciava. Diante das respostas, eu disse: Por que iríamos querer distanciamento se queremos conversar, se queremos dialogar melhor com todos e todas? O silêncio mostrou que estavam pensando a respeito. Falamos um pouco de antigamente, de como a Língua era ensinada, de como as pessoas eram obrigadas a escrever aos moldes dos autores canônicos – pensamos o termo cânone, inclusivamente –, de como as pessoas eram obrigadas até mesmos a formatar suas letras. Fiz com que pensassem em liberdade ou formas de aprisionamentos…
Então, fomos conversando a respeito, expliquei sobre variação e variedades linguísticas, sobre coloquialismo, norma culta ou padrão. Vimos vários sotaques, rimos juntos de algumas expressões curiosas que descobríamos, trocamos experiências pessoais, etc. Depois falamos sobre política e economia e suas relações com a nossa língua, sobre o novo acordo ortográfico, e por falar na “nossa língua”, perguntei: será que ela é mesmo nossa? Porque será que falamos tão diferentes dos portugueses e seguimos a gramática da língua portuguesa? Silêncio. Temos ou não temos uma língua brasileira? Silêncio novamente. Mais uma vez voltamos no tempo, ao contexto da colonização, à imposição da língua do colonizador, pensamos nas possibilidades e impossibilidades linguísticas das várias etnias em relação à imposição de uma única língua, a língua portuguesa que estudamos na escola, uma língua herdada e imposta.
Estaria Carlos Drummond de Andrade mesmo certo? “O português são dois, o outro, mistério”?
E daí, nossas conversas não mais pararam… continuamos em nossas aulas a pensar a respeito…
Aline Bernar