Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Fernando Pessoa
Era aluno de uma pequena escola municipal, num bairro periférico da Baixada Fluminense, lugar profundamente estigmatizado como espaço de pobreza e criminalidade. À época (2014), a escola funcionava em dois turnos, apenas, com turmas do primeiro ao sexto ano, compreendendo os dois primeiros ciclos do Ensino Fundamental. Abrira mão, no ano anterior, de suas turmas de EJA — casos graves de indisciplina, depredação da escola e violência entre alunos motivaram a decisão. Wesley chegou à escola transferido de outra unidade, com fama de indisciplinado. Tinha dezesseis anos e estudava no turno da tarde… no sexto ano. Tentou-se demover a mãe, convencê-la a matricular o rapaz na EJA, em outra unidade escolar do município ou da rede estadual, mas causos escabrosos, comentados entre vizinhos, pesavam contra o conselho. “Melhor não, o menino pode se desencaminhar.”
A rede municipal não reprovava alunos antes do terceiro ano do Ensino Fundamental, o ano terminal do primeiro ciclo. Considerando, então, que crianças matriculadas no primeiro ano têm sete anos incompletos e, sem reprovações, chegam ao sexto ano por volta dos onze anos, isso quer dizer que, apenas do terceiro ao sexto ano, Wesley acumulou nada menos que cinco reprovações. E tudo indicava que seria reprovado mais uma vez.
Com mais de 1,70m, um buço que se avolumava e pelos no queixo, ele se destacava de seus colegas de turma, infantes pré-púberes agitados que jogavam “bafo” com cartinhas do Naruto, durante o recreio. Wesley gostava do Naruto, mas não tanto quanto já gostara, e não se ocupava colecionando cartas para jogar com seus colegas de turma. Os piques e brincadeiras de pegar também não lhe eram muito atraentes. Só o futebol, jogado com uma surrada bola dente de leite, interessava. Normalmente, porque era “grande demais” para jogar na linha, era mantido no gol (disputado ferrenhamente pelos times, graças à invulgar envergadura para um aluno do sexto ano). Não fosse o uniforme da rede municipal, seria facilmente confundido, nos pontos de ônibus e calçadas por que perambulava até chegar à escola, com um veterano do Ensino Médio.
No fim do primeiro semestre, antes do recesso de julho, a orientadora tentou novamente convencer sua mãe a transferi-lo para a EJA. “Será melhor para o menino, para ele recuperar o tempo”. A responsável discordava — ainda lidava mal com a transferência do rapaz (a escola anterior era mais próxima de casa), e temia que os alunos do turno da noite lhe fossem má influência. As histórias de briga e uso de drogas, reais, aumentadas ou imaginárias, ainda lhe estavam frescas na memória. Manteria o filho no turno vespertino enquanto pudesse, pois queria ter a certeza de que ele estaria durante a tarde na escola.
Wesley não era muito afeito às atividades escolares. Fora ensinado por sua experiência que havia pouco que pudesse fazer ou, ao menos, fazer como esperavam que ele fizesse — dos dez anos de vida escolar de que gozava até então, metade fora cumprindo repetências. Não dividia seu caderno entre as matérias escolares e costumava não anotar muito do que se escrevia no quadro. Sempre que o caderno era checado, o resultado era parecido — uns cabeçalhos incompletos, dois ou três enunciados sem respostas e muitos rabiscos.
“Não, fessô, num é rabisco, não: são pichos.”
“E você costuma pichar, Wesley?”
Dava de ombros e franzia os lábios. A queixa mais frequente dos professores era sua apatia. Revirava folhas de prova e acabava por entregá-las em branco, às vezes nem anotando seu nome. “Esqueci, tio. Põe aí pra mim”. Não fazia trabalhos de casa, não compunha grupos, não produzia maquetes nem cartazes. Não tanto por rebeldia — tinha uma tática marota de ir ao banheiro ou beber água quando grupos eram formados e tarefas delegadas; retornava e ficava desenhando as pichações nas folhas de seu caderno, evitando colegas e professores. Acabava sendo inserido, a contragosto, em algum grupo pelos docentes, mas se restringia a sentar-se perto dos colegas, em silêncio. Sua teimosia era mansa, misto de resignação e muitas frustrações. Certa feita, o ex-ministro Cristovam Buarque se dissera “frustraliviado” por deixar o Ministério da Educação; Wesley parecia, a todo o tempo, frustrasignado por ter de permanecer na escola. Só ficava ali, sentado, silente, às vezes sorrindo, e nada fazia.
Era retirado de sala com certa regularidade: atividades não feitas e um cascudo desferido, de mau humor, em algum colega menor. Apresentava baixo rendimento em quase todas as disciplinas. Alguns professores confessavam que seu jeito taciturno e seu avolumado corpo de quase adulto lhe davam um ar de intimidação. Não era difícil ter compaixão de Wesley, sofrido como era, embora não fosse fácil lhe ter simpatia — um afastamento constante (preventivo?), um silêncio hostil e um completo desinteresse pelas coisas da escola se sobrepunham à história de pobreza e privações que compartilhava com tantos de seus colegas; alguns deles, aspirantes a Wesley. Ao fim do quarto bimestre, seu boletim apresentava conceitos insuficientes para ser, mais uma vez, reprovado.
As reprovações, a despeito do que se pense, eram recebidas com tristeza pela gestão, ainda mais de um rapaz com tamanha distorção idade/série. Muitos eram os deméritos que se colavam à pequenina unidade, pelos olhares externos que julgam impiedosamente — o IDEB baixo, o entorno violento, as crianças pobres. Os professores, claro, eram taxados incompetentes. Cada reprovação era mais um prego batido com força à tampa do féretro em que se sepultava a autopercepção da escola. Era ponto pacífico entre todos os docentes que Wesley abandonaria os estudos após o ano seguinte, quando chegaria à maioridade, com o fundamental incompleto. Mas sua promoção estava fora de questão, pois alguns professores pareciam aferrados à função disciplinadora do exemplo. Wesley não ainda não tinha aprendido!
“Ele não fez nada! Se o promovermos, que recado estaremos dando às outras crianças, menores que ele?!”
“Um descalabro! Aprenderão que dá para passar fácil, sem estudar. Aí, o que faremos?!”
Por fim, após longas deliberações em um conselho que se alongava de um final de tarde para o início de uma noite quente na segunda quinzena de dezembro, surgiu o argumento que convenceu a todos da importância cabal de sua promoção: “Ano que vem, ele terá 17 anos. Estará utilizando o mesmo banheiro que as crianças com 9 a 11 anos usam.”
E assim, finalmente, depois de cinco anos sendo reprovado “para aprender”, Wesley foi promovido para não usar o banheiro dos pequenos.
Renato Simões
Outubro de 2020